– O conselho da escritora Camila Famosa foi não escrever com compulsão – afirmei com voz autoritária.
– E como faço? Perguntou o homem tirando os óculos e colocando-os sobre a mesa escura perto de um livro aberto, à direita do copo com refrigerante.
– Eu faço tudo de maneira compulsiva, falo compulsivamente, fumo compulsivamente, até transo compulsivamente, mas, não quero que espalhe essa última informação, hein?... pois odiaria ver mulheres me perseguindo para constatar se é verdade – a verdade é que sou um amante à moda antiga, eu gosto de paquerar mulheres e não gosto mesmo de mulheres tentando me paquerar.
Penteou o cabelo com dedos da mão direita, levantou a cabeça e recolheu o queixo de maneira vaidosa e começou a cantar:
“Eu sou aquele amante à moda antiga
do tipo que ainda manda flores
e escreve, e escreve, e escreve, e escreve, e escreve, e escreve, e escreveeeee...
porque no peito ainda abriga
Recordações de seus grandes amores...”
Além de modificar a letra, como ele cantava mal! Sua voz era rouca. Eu fiz um gesto de desaprovação mexendo a cabeça várias vezes para um lado e para o outro horizontalmente.
Ele tussiu ou fingiu tosser, retrocedeu alguns passos, sentou-se na cadeira de madeira e disse:
– Bem, continuando, eu sou obsessivo compulsivo e se eu não escrever por compulsão e de maneira compulsiva, eu não consigo. Sem compulsão não consigo fazer nada. Imaginem fazendo sexo sem compulsão, eu vou broxar, céus! E tentar escrever assim de fininho, como quem não sabe de nada, não sei, não! Mas sem paixão, sem obsessão, sem compulsão, Nossa Senhora! Isso não será texto, será página em branco. Algo me compele a colocar traços desiguais nas páginas, eu escrevo à caneta, nada de computador, nem modernidades. Já falei, sou um amante à moda antiga. Gosto de papel de verdade, papel no qual seja possível escrever, apagar com borracha, reescrever, riscar, colocar “x” ao lado de frases interessantes, sublinhar, dobrar o canto superior direito da folha, fazer anotações, ou pequenos desenhos nas margens e guardar nas estantes, nas gavetas, embaixo da cama, ou rasgar e jogar de longe no cesto de papéis gritando: Goooollll! Eu sou o melhor!!!
Levantou-se da cadeira. Parecia emocionado.
– E o que acha de deixar a mente em branco para escrever, não pensar em nada? - insisti eu fingindo indiferença.
– Acho bom, muito bom, para quem conseguir. Eu não consigo cara, eu preciso pensar, imaginar, observar os personagens pela fresta da fantasia, e falar deles, falar, falar, falar... ou melhor dito, escrever, escrever, escrever. Que escrevam sem compulsão os grandes literatos, os escritores calmos e disciplinados. Eu não. Minha obsessão é escrever. De manhã, à tarde, à noite. Eu gosto de escrever e odeio escrever. Por isso escrevo. Escrever é emoção – ou emoções. Quase um ritual de morte e renascimento. Quase um bater de asas de morcego na noite.
Olhei-o fixamente. – Você não faria a experiência por uma semana? – Perguntei com voz suave.
O escritor não respondeu, mas retrocedeu e voltou a sentar-se na mesma cadeira de madeira.
– Só por uma semana, escrever sem pensar, o que acha? Seguir o conselho de Camila Famosa?
Ele, vencido, fez um sinal de afirmação com a cabeça. Imediatamente seus olhos fugiram pela janela, rumo à rua poluída de carros.
Uma semana depois entrei em sua biblioteca. Ele estava sentado diante do computador, calmo. Sorridente. Você conseguiu? perguntei.
– Escrever sem pensar?
– Isso.
– Consegui, sim – murmurou.
Aproximei-me para ler no computador o que havia escrito e dizia: “escrever sem pensar, escrever sem pensar, escrever sem pensar”.... fui para a outra página: “escrever sem pensar, escrever sem pensar, escrever...”
– Você repetiu milhares de vezes a mesma frase! Gritei.
– Mas não pensei, retrucou ele, não pensei em nada. Eu escrevi. Diga essa verdade para Camila
Famosa: Mente em branco é para escritores autocontrolados. Muitas vozes é o caminho para escritores com múltiplas personalidades. Ser perseguido pelos próprios personagens é para escritores paranóicos, já escrever compulsiva, obsessivamente é para mim. Fazer o quê? Obsessão é destino.
Isabel Furini
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