Para um crítico literário o melhor presente é quando ele pressente que um bom poema vira clima. Falo isso porque fui fisgado por um poema clima muito bem construído pela poeta Isabel Furini.
É notável a diferença entre um poema feito com técnica e refinamento de um desabafo histérico on-line, on paper ou on voice, quando gritados no Passeio Público, por exemplo.
Desabafos histéricos financiados, inclusive, com o dinheiro público, gasto em péssimas estratégias de políticas ditas culturais. Esta é a minha opinião democrática e garantida pelo Estado Civil de Direito. Mas esqueçamos desta metuenda concepção de poesia, que rasteja por aí, e nos atenhamos ao que há de melhor.
Posto o poema para que o leiam e em seguida farei a análise crítica.
FURINI, Isabel. Poesia. Disponível em: Acesso em: 25 de setembro de 2015.
Quadro de Baldassare Peruzzi.
Ao nos depararmos com o título do poema "Poesia", já sabemos que se trata de um metapoema. Um poema que fala sobre si mesmo, sobre sua confecção ou sua finalidade.
Dou-me o luxo de fazer uma observação interessante, antes de prosseguir a análise. Notem que o título do poema é "Poesia", mas durante todo o texto o "eu lírico" fala sobre poema. Sim, há poema sem poesia e os há aos borbotões. Basta darmos uma circulada pela cidade. Poemas com corpo, mas sem alma, caminham por aí ao estilo Walking Dead. Mas estes poemas sem poesia não são o tema do poema em questão.
Consideremos, então, o fato de que o poema, objeto do argumento do "eu lírico" seja um poema com poesia: alma + corpo. Somente um poema com poesia faria a viagem proposta pelo texto. Então, vamos à viagem!
Reparem os dois primeiros versos:
"os poemas impulsionam sonhos
alimentam as almas dos dragões"
Aqui os poemas são impulso e alimento. Ao impulsionar sonhos o poema vê uma lua no céu e se torna as asas de Ícaro. O sonho de voar é o que impulsionou o mitológico sonhador às alturas. Uma altura da qual muitas vezes não se pode escapar ileso.
O poema, neste primeiro verso, é um motor propulsor que, se obviamente compreendido, torna-se compressão e nos lança para o alto. O poema, com toda sua inutilidade, nos eleva e releva nossa condição mortal.
No segundo verso os poemas "alimentam as almas dos dragões". Bem, aqui o poema vê uma lua no mar. O dragão é um fenômeno mitológico bastante raro, pois é representado em diversas culturas. É a união entre a serpente que rasteja e a ave que voa.
Ao alimentar a alma desta dicotomia entre céu e terra, o poema encerra em si o papel de elo. Um poema elo entre céu e inferno, entre a lua do céu e a lua do mar. Um reflexo complexo de dois extremos em si mesmos.
A palavra "dragão" não está no poema à revelia. Ela marca com água e fogo, céu e inferno, lua e mar o reflexo dos extremos que se contemplam. A tensão de se contemplar o diferente e o antagônico é a marca do início do poema.
Em seguida, mais dois versos:
"quebram antigos espelhos
invadem sentimentos no quadrante das ilusões"
A tensão gerada pelos dois primeiros versos encontra seu ápice nos dois versos seguintes. Quando o "eu lírico" afirma que os poemas "quebram antigos espelhos" ele nos apresenta outra qualidade do poema: a iconoclastia do conteúdo e da forma.
Um espelho antigo refletira a imagem de sabe-se quantos rostos e desgostos. O espelho é o símbolo da realidade que não pode ser tocada. A realidade, Medusa, não pode ser encarada sob a pena nada penada de nos aturdir a tal ponto que podemos nos petrificar de espanto.
Lembremo-nos de que Perseu só consegue encarar a sua realidade Medusa pelo reflexo do seu escudo. O espelho é nosso escudo para a realidade. Vendo a realidade no espelho ela deixa de ser palpável e por isso torna-se menos aterrorizante.
O poema iconoclasta quebra o nosso escudo de reflexos e nos deixa perplexos diante da realidade nua. Ou, em outras palavras, o poema nos tira a segurança do conhecido e nos revela múltiplas realidades distorcidas.
Uma vez que o espelho está aos cacos, cada caco reflete a sua realidade eco. Não há mais uniformidade, mas deformidades. O poema iconoclasta deforma a realidade sabida e invade o quadrante das ilusões para penetrar os sentimentos.
Esta penetração não consentida, já que o poema não pede, mas "invade", no estupro dos sentidos, muda o olhar do leitor para as coisas. Isso fica evidente nos dois versos que seguem:
"alagam os jardins para que as flores
naveguem em barquinhos de papel"
Aqui a prosopopeia que permeia todo o poema e faz dele um sujeito ativo de seu próprio efeito alaga jardins. Perceba que o poema sai dos cacos do caos para construir novas imagens. As flores do jardim são metaforizadas em barquinhos de papel a navegar pelo alagadiço jardim da vida.
É um momento de trégua em que o poema se entrega à devassidão da metáfora. Sim, a metáfora é uma devassidão que transforma a coisa em outra coisa, prostituindo sentidos em cada esquina do poema, no fetiche de cada pezinho do verso.
O poder transformador do poema que hora nos aquieta, ora nos inquieta é sua forma-efeito de refletir extremos. Após a tempestade draconiana dos dois primeiros versos e da quietude navegante do final da primeira estrofe, temos:
"gravam nas pedras do labirinto
textos sibilinos
escritos com o sangue envenenado do mundo globalizado"
A navegação se transforma em gravação. O poema tenha forma fixa ou não, seus sentidos são deformados e lança o leitor em um labirinto de possibilidades, molhado pelas previsões das Sibilas.
As Sibilas eram deidades romanas que tinham o dom da profecia. Os poemas, com suas possibilidades deifobas, deixam gravados os descaminhos labirínticos de uma humanidade que vive em um mundo globalizado.
Interessante notar que, neste verso, a insistente repetição da consoante sibilante [S] provoca um som semelhante a um pedido de silêncio. Um silêncio sibilante de Sibila que profetiza sangue e envenenamento.
O mundo globalizado que fornece e fenece a tinta sanguínea para a escritura do poema não redime o poema de sua culpa. O poema não é uma vítima inocente de um processo de dissolução, pois ele mesmo quebrou o espelho e fez cacos da realidade.
Enquanto o mundo globalizado encurta distâncias o poema deforma sentidos. Há, então, uma simbiose entre envenenamento e poesia, ópio e espelho, céu e terra, corpo e alma.
Nesse processo simbiótico e caótico o poema termina:
"(choram as Musas
e chora o Minotauro no labirinto das palavras)"
Repare que ao usar o recurso dos parêntesis, a poeta transforma o final do poema em uma espécie de rubrica de uma peça dramática. As musas dos poetas comportados e sonhadores choram e chora o Minotauro, metáfora do "eu lírico", metade homem, metade animal a vagar pelo "labirinto das palavras". Um labirinto que não tem fim, semelhante ao labirinto de Creta e que, de forma discreta, revela que a única saída é por cima.
Apenas o poema elevado pode escapar da perdição do labirinto. Somente um voo cego e elevado, acima das paredes da realidade, acima dos alicerces da obviedade, acima dos aplausos da mediocridade, acima de qualquer deidade e sobre o império dos sentidos em cacos consegue libertar este "eu lírico" de seu típico final sinal de sina.
Bem, esta foi a minha análise do belo poema de Isabel Furini. É de poemas assim que Curitiba precisa. São poetas como Isabel Furini que fazem Curitiba se olhar no espelho e se molhar toda nua no bebedouro do Largo da Ordem que em silêncio se insinua a nos mostrar o perplexo reflexo da Lua.
Professor Robson Lima
Robson Lima, professor, palestrante e consultor de Língua Portuguesa.