segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Um caixão para Ruperto - Conto de Isabel Furini


Por Isabel Furini

Quando Ruperto, o erudito, morreu, havia nevado na parte norte da Itália e as crianças brincavam com neve nas ruas. Quando Ruperto morreu, algumas aves revoavam no céu, talvez aproveitando que a neve havia parado de cair. E nessa manhã, quando Ruperto, o erudito, morreu, nascia uma criança albina de um parto difícil, e uma moça, que estava catatônica há meses, levantou-se e começou a dançar, e uma menina triste, que perdera a mãe, depois de ficar no quarto durante muitas semanas, correu até a rua para brincar com a neve. E no mesmo horário em que Ruperto morreu, o padre Antônio viu uma luz expandir-se e afastar-se do lado de fora da igreja.

Padre Antônio, o pároco do povoado, fora chamado na noite anterior para dar a extrema unção ao Ruperto. Encontrou o moribundo pálido e suado, apesar do frio. A boca muito aberta tentando respirar. Faltava-lhe o ar e ainda assim sua mão direita segurava um lápis pequeno, e a esquerda apertava a borda do livro que tentara terminar durante toda a sua vida. Ele não conseguiu a chave para sair do dicionário perfeito. Como é de costume, os dicionários vão avançando de um verbete a outro verbete, que comente de maneira mais exata o tema estudado.

– Faltou uma palavra, padre, só uma palavra... – disse o moribundo.

O padre pegou o lápis da mão de Ruperto e, ao tentar tirar o livro, o moribundo tentou levantar a cabeça, sem voz e com um olhar de desespero, apertou fortemente o enorme caderno. A obra de sua vida, a obra inacabada. Uma idosa chorava de seu lado.

Ruperto não tinha parentes, mas a vizinha gostava dele apesar de ter fama de louco. Era um homem pacífico. Um estudioso. Alguém que dedica sua vida a escrever um livro, só um livro, não pode ser má pessoa. Só os loucos aferram-se às coisas como se tivessem o poder de perpetuar a existência. Ruperto aferrou-se ao seu dicionário quando sua esposa morreu, passava o tempo lendo e escrevendo, e sua vida foi tomando forma graças a ele. Mas antes de morrer, entendeu que havia fracassado. Fracassado. Bem lhe dissera, há vinte anos, a duquesa Maria Paola, que era impossível terminar uma obra dessas. Era contra Deus fazer um manuscrito em que cada palavra era explicada por outra e essa por outra e essa por outra até por fim voltar à primeira. Voltar? Tentar voltar, porque Ruperto fracassou e não conseguiu voltar à primeira palavra.

O padre, impressionado com a teimosia e o trabalho de Ruperto, decidiu fazer uma pequena homenagem: um caixão redondo.
– Por que, padre? – perguntou curioso Giuseppe, o carpinteiro.
– É para Ruperto continuar sua obra no céu. – respondeu o padre. Ele tentou criar um dicionário em que cada palavra remitia a outros verbetes e desejava que os verbetes esclarecessem uns aos outros, até voltar à primeira palavra. Um círculo aparente. Mas não... – disse o padre, coçando o bigode. Na realidade era uma espiral!
Ao dizer isso, o padre Antônio pensou que o caixão redondo não seria representativo de Ruperto e decidiu pedir para o carpinteiro fazer um caixão em espiral.
– Um caixão espiral? – o pobre homem olhou-o com os olhos enormes. Pela primeira vez em anos abriu os olhos em toda a sua plenitude, pois, acostumado com os mortos, trabalhava a madeira dos caixões com os olhos quase fechados.

– Um caixão espiral? – perguntou novamente.

Em anos de profissão, havia escutado solicitações estranhas e sempre havia obedecido, como a do conde Francesco, que pediu para enterrar o pai em um caixão branco por fora e azul com estrelas prateadas pintadas por dentro, para que se lembrasse do caminho do céu. E aquela senhora que vivia perto rio, depois da ponte, qual era seu nome? Esqueceu, mas se lembrava dos olhos azuis e das lágrimas quando ela solicitou um caixão com a imagem de Santa Lúcia na tampa para a sua irmã. E aquela mulher de mais de 80 anos, que fora abandonada antes do casamento pelo noivo e se manteve virgem, antes de morrer, solicitou um desenho da genitália masculina no lado de dentro da tampa, para ter em morte o que não havia conseguido em vida. Eram tantas as lembranças... Mas um caixão espiral? Nunca ninguém havia solicitado!

Giuseppe estava confuso. Seu tio fazia caixões e lhe havia ensinado a arte. Giuseppe abraçou a profissão de uma maneira quase mística. Achava que era um dever e uma missão dada por Deus. Por isso nunca ficava zangado quando a família de sua esposa zombava dele. Sua esposa queria que ele trabalhasse com seu irmão vendendo frutas no mercado, pois se sentia constrangida de dizer que o trabalho de seu marido era fazer caixões. Mas Giuseppe amava seu trabalho e não cedia às reclamações da esposa. Ele sempre obedecia às solicitações realizadas pelos clientes.
Giuseppe sempre fazia dois moldes, o primeiro para o caixão e outro para a tampa. Ambos de tamanho real. Tinha muito cuidado com os painéis laterais, pois deviam encaixar perfeitamente para serem presos às bordas da base. A medida da tampa precisava ser correta, especialmente a medida dos ângulos, para o ajuste perfeito da tampa, poucos sabiam disso, mas ele escutara alguém dizer ao seu tio que os segredos de um bom caixão são o tipo de madeira usado, os entalhes e o encaixe correto da tampa. Um encaixe torto prejudica o caixão, ainda mais os construídos com madeira nobre. Giuseppe era cuidadoso e o caixão sempre saía de acordo com o molde. Ele observava se todas as partes estavam corretas antes de prender os painéis laterais na base e entre eles. A borda inferior de cada painel deveria estar bem encaixada à base, e a tampa, ajustada corretamente.

Fotografia de Isabel Furini - Museu Rosacruz de San José, Califórnia.

Pela primeira vez, Giuseppe não sabia como construir um caixão! Como era um homem honesto, falou:
– Padre Antônio, eu nunca fiz um caixão espiral.

O Padre decidiu pedir ajuda. Reuniram-se então no salão nobre da prefeitura os homens mais inteligentes e todos os que trabalhavam com madeira: marceneiros, carpinteiros, agentes funerários, engenheiros, professores, administradores, decoradores e o próprio prefeito, que estava cansado da administração da cidade e só pensava na próxima viagem a Veneza – Veneza, local de belas mulheres.
O alvoroço produzido no povoado pela forma do caixão foi tal que até as carpideiras deixaram de chorar e começaram a discutir sobre maneiras de fazer um caixão espiral.

– Espiral ou espiralado? – perguntou um marceneiro. – Eu faço formas espiraladas desenhadas na madeira.

Todos respiraram aliviados. O agente funerário ordenou fazer um caixão comum, e com uma faca gravaram imagens de espirais.
Giuseppe continuava desenhando espirais em uma folha.

– Não foi isso o que pedi. – disse o padre Antônio com autoridade. – Eu quero um caixão com forma de espiral.

Novamente começaram as discussões em busca de uma solução. Como fazer um caixão de forma espiral? Espiral dá voltas sobre si mesma. Espiral é um quase círculo que se abre para dar origem a outro quase círculo, que se abre para dar origem a outro quase círculo, que se abre para...
– É impossível fazer um caixão desses! – disse o marceneiro.
– Silêncio! – gritou Giuseppe. – Se ele quer um caixão espiral, terá um caixão espiral.
– Forte o suficiente para suportar o peso do Ruperto? – perguntou o padre.
– Será forte o suficiente. – prometeu o carpinteiro.

E ele mesmo pegou uma madeira de três metros por três e desenhou uma espiral. A espiral começava no centro e girava para a direita. Cada traço afastava-se do centro e crescia em direção ao exterior, como uma fuga premeditada, como o centro de uma galáxia, que se estendia para chegar aos confins de si mesma.

– Padre, o senhor quer uma Via Láctea! – exclamou Giuseppe, que gostava de observar e estudar as estrelas.

E seu lápis tornou-se um instrumento sagrado. E todos fizeram silêncio. O padre Antônio disse que a Via Láctea é uma espiral gigantesca, como o dicionário de Ruperto, que talvez não estivesse brincando com as palavras, mas tentando chegar à palavra primordial que deu origem... origem ao universo! E seus olhos abriram-se tão grandes que pareciam duas fogueiras queimando numa noite escura.

Então Giuseppe, o carpinteiro, homem do povo, falou:
– Padre Antônio, podemos cortar a madeira e deixar um espaço entre as linhas. É isso o que deseja? Um espaço vazio?
– Um espaço vazio! – gritou o padre, que era um homem iluminado.

Um espaço... Era essa a solução. Sempre é necessário um vazio para que Deus possa preencher. Esse foi o mistério que Ruperto procurou durante toda a sua vida e morreu sem saber que, como falaram os pitagóricos, um ponto deu origem ao universo e que a origem das palavras, que deu origem aos verbetes circulares, não era outra palavra como pensava Ruperto, mas um silêncio. O silêncio primordial, o silêncio que antecedeu o Verbo.

Isabel Furini é escritora, professora e palestrante.
e-mail: isabelfurini@hotmail.com

Um comentário:

  1. Marli Andrucho Boldori5 de dezembro de 2022 às 15:06

    Um conto extremamente interessante, instigante. Parabéns, Isabel Furini!

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