CONTO DE ISABEL FURINI
Patinho Feio, se tocar minhas revistas vai apanhar.
– Patinho Feio, se mexer na minha bicicleta vai levar chute. – Patinho Feio, fora do meu quarto! Marcelão era o irmão mais velho e sentia prazer, verdadeiro prazer em ofender Diogo, o caçula da família. Na verdade, ninguém o chamava de Diogo, todos o chamavam pelo apelido de Patinho Feio: os vizinhos, os amigos, a família. Achavam que era um menino diferente. Coitado! Era magricela, com aqueles braços e pernas fininhas, como cordas de pular ou talharim. Até a empregada tinha pena dele. Diogo não era feio. Seus olhos eram claros e seu olhar inteligente, mas a sua voz, um pouco aguda, incomodava os irmãos, dois grandalhões arrogantes, estrelas do futebol na escola. Diogo, além de magricela, além de desengonçado, era ruim de bola. Susana, a mãe, também o achava estranho. Ela nunca disse nada. Queria na verdade ajudar o filho, mas nem sabia o que fazer. Em um domingo de manhã, dona Susana arrumava a cama de Diogo quando algo embaixo do colchão chamou sua atenção. Correu para mostrar ao pai do menino. – Sabe o que encontrei embaixo do colchão do Diogo? – Uma revista de mulher pelada!? – perguntou o pai. – Não, claro que não! Olhe! Diogo escreveu um caderno inteiro de poesias e escondeu debaixo do colchão. – Escute este poema: Marcelão, o Troglodita. Meu irmão o troglodita, sempre comilão, queria engolir as asas de um avião com batatas frita e macarrão. – Poesias, Susana, poesias – esse menino precisa de mais garra, mais raça! De nossos quatro filhos é o único que não quer jogar futebol – reclamou o pai. E era verdade. Até Miranda, a irmã de Diogo, estava na equipe feminina de futebol. Mas o Patinho Feio, digo... Diogo, vivia a sonhar, gostava de ler, de escrever poemas e também era viciado em computador. Um verdadeiro nerd! – comentava Marcelão. – Sou o único intelectual desta casa – reclamava Diogo para seu amigo Guilherme. O computador foi o presente que mais apreciou na vida. Presente de aniversário do tio Roberto. O quarto de Diogo era pequeno. O quarto maior era da Miranda. Ela guardava todas as bonecas e bichos de pelúcia que tinha ganhado desde bebê. Seu quarto tinha estantes e mais estantes com bonecas. Já os quartos de seus irmãos Marcelão e Jaime eram do mesmo tamanho. Eram quartos desordenados, roupas no chão e bolas de futebol, vôlei e basquete por todos os cantos. O quarto menorzinho ficou para Diogo, um quarto cheio de livros e brinquedos de montar, além do computador. – Família de esportista é chata! – pensava Diogo, deitado na sua cama. Percival, o gato branco, estava deitado ao seu lado. Diogo não tinha com quem conversar, até a mãe achava estranho que Diogo só gostasse de desenhar e fazer rima. “Coloca o boné.”, pedia a mãe. Diogo respondia: “Boné é para Saci Pererê”. Se a mãe dizia: “Hoje vamos comer rabada”. O Diogo inventava: “Meus irmãos vão comer rabada e depois vão jogar uma pelada”. – Jogue pelada você também – pedia o pai. – Eu não jogo peladas, porque nas peladas os maiores dão pancadas e os pequenos machucam os joelhos e doem como facadas. Quando a mãe o mandou ao mercado para comprar um pé de alface para a salada, Diogo começou a inventar: “O pé de alface jurou que chutaria quem se aproximasse.” Por essa sua mania de fazer rima, os irmãos não gostavam dele e o chamavam de Patinho Feio. Era “Patinho Feio, não amola! Patinho Feio, saia de meu quarto! Na sala da casa, perto do sofá azul, havia um móvel de madeira lustrosa com estantes cheias de troféus conquistados pelos seus irmãos esportistas. Diogo nunca havia ganhado um troféu. Ele era diferente. A mãe tentava entendê-lo, mas tinha tanto trabalho. Ir ao mercado, fazer a comida e à tarde ajudar o pai no escritório. Os pais trabalhavam, os irmãos iam ao clube e o Diogo ficava em casa. Nesses dias tinha lido vários poemas e estava inspirado. – Não conte para ninguém, Guilherme, mas eu quero ser escritor – confessou para seu melhor amigo. Na terça-feira, os irmãos saíram e Diogo ficou em casa. Só estavam a empregada e ele. “Quero que limpe o porão”, tinha pedido dona Susana depois do almoço, antes de sair para o trabalho. – A casa é muito grande, senhora, não sei se vai dar. – Por favor – pediu dona Susana – Deixe a roupa para passar amanhã. – Tchau, Patinho Feio – disse Marcelão, entrando no quarto de Diogo sem bater, rápido como uma ventania, e pegando da gaveta do criado-mudo a última mesada que sua mãe lhe dera. – Esse dinheiro é meu! – gritou Diogo. – Venha pegar então! Venha que vai receber um soco. Tchau, Patinho Feio. Faça karatê em vez de escrever poemas e poderá defender sua mesada, bobão. Marcelão e Fernando desceram as escadas correndo. Diogo ficou triste. Sentia-se bobão mesmo! Já fazia tempo que seu irmão pegava emprestada quando queria a sua mesada. Só que não devolvia. Quando terminou de lavar os pratos, Tânia desceu ao porão e Diogo foi atrás. Fazia dez anos que Tânia trabalhava na casa. Cozinhava bem, mas era respondona e mal-humorada e não suportava as reclamações do Diogo: “Marcelão é abusado. Um grandalhão metido a besta”. – Seus irmãos não vão mudar, você tem que mudar – afirmou Tânia. Diogo não disse mais nada. Ficou vasculhando no porão. Na velha arca escancarada, em caixas. Nela tinha de tudo: revistas antigas, vestidos, latas de tinta, pincéis, cortinas, jornais, um baú com álbuns de fotografias antigas e até livros. Com as folhas úmidas, amareladas, encontrou um livro de capa azul: “Poemário” de um tal de Diogo Armando Walter da Silva. Abriu-o e deleitou-se lendo os poemas. – Você sabe quem foi esse Diogo? Foi o avô de sua mãe, ou seja, seu bisavô. – Como sabe? – Eu trabalho nesta casa desde antes de você nascer. “O livro de meu bisavô...”, pensou Diogo e sentiu-se feliz. Ficou mais feliz ainda quando Tânia aproximou-se com uma caixa de papelão. – Olhe! – ordenou. Diogo abriu-a. Havia seis troféus, algumas medalhas e vários diplomas de seu bisavô. Os diplomas estavam um pouco comidos pelas traças, mas os troféus e medalhas estavam em boas condições. Um pouco escurecidos pelo tempo. Diogo foi até a lavanderia e pegou o limpa-metais. Passou a tarde lendo e limpando os troféus e os medalhões do bisavô materno. Quando seu amigo tocou a campainha, Diogo desceu correndo e falou dos poemas e dos troféus. – Puxa vida! – exclamou – como gostaria de ter conhecido o único poeta da família. No horário do jantar as conversas de sempre: esportes. – Mãe, vi livros, troféus e medalhas de Diogo Armando Walter da Silva. É verdade que ele foi meu bisavô? – Ah! Você achou... Sim, ele era meu avô – disse a mãe – eu gostava dele, lembro que uma vez fez um poema para mim. Depois do jantar a família reuniu-se na sala para assistir televisão. Diogo ficou com a mãe na cozinha olhando as fotografias e perguntando sobre o bisavô poeta. – Como ele conseguiu ganhar tantos concursos? – Ele era um bom poeta – disse a mãe saudosa. – Mas ficaram os livros, as medalhas, os troféus! – exclamou Diogo entusiasmado. No dia seguinte, na escola, Guilherme e Diogo decidiram criar um blog. Uma semana depois, ao voltar da escola, Marcelão pediu: – Patinho Feio, você sabe fazer poemas com anáfora? – O que é uma anáfora? – Anáfora é repetição da primeira palavra em várias frases consecutivas. Por exemplo: O céu é bonito, o céu é azul, o céu está nublado... – Já entendi. Eu não sabia que essa repetição se chamava anáfora. – Você sabe fazer isso? – perguntou o irmão, e Diogo foi ao seu quarto e voltou com um caderno de poemas que ele mesmo tinha escrito. – Vou ler, Patinho Feio, depois te devolvo. Marcelão escolheu um poema, copiou no caderno e levou para a escola. VER DE VERDE Inspirado em Verde-negro de Mário Quintana Verde Ver de perto Ver de longe Ver de lado Ver de trás Ver de frente Ver o verde Perto da gente. – Quem fez as tarefas? Quero ver os cadernos! – ordenou a professora. Marcelão, contente, entregou o caderno. A professora leu e achou muito bom. – Inspirado num poema de Mário Quintana? Marcelo, eu não sabia que você lia Mário Quintana. E o que pode dizer dele? Marcelão ficou de pé, em silêncio. Todos os olhares para ele. – Professora, o Mário Quintana foi extraordinário. Extraordinário! Um grande poeta, professora... A professora ficou feliz com a resposta. Ela também admirava Quintana. Levou o caderno do Marcelão para a diretora. A diretora gostou do poema e o apresentou num Concurso de Poesia para alunos do Ensino Fundamental. Na segunda-feira, quando a professora entrou na sala de aula e solicitou para Marcelão ir à diretoria, um murmúrio espalhou-se. – O que fez desta vez, Marcelão? – perguntou seu amigo Roque. Marcelão sentiu a boca seca. “Estou enrascado”, pensou. Quase desmaiou quando a diretora o parabenizou pelo poema. O poema era de Diogo, mas sabia que, se confessasse que tinha pegado o poema do irmão, seria castigado. Dona Susana estava trabalhando na contabilidade da empresa quando recebeu uma ligação da escola. A própria diretora explicou que Marcelo havia ganhado um concurso de poesia. Dona Susana era uma mulher inteligente e conhecia os seus filhos. “Marcelão, escrevendo poemas? Hummm...”. Ela suspeitou imediatamente, mas não disse nada para a diretora. À noite, depois do jantar falou: - Marcelo, eu não sabia que você escrevia poesia. Marcelão ficou sem jeito, não sabia o que dizer. “Eu... eu... eu...”, gaguejou. – Você roubou os poemas do Diogo? Marcelão negou várias vezes, mas por fim confessou que realmente tinha se apropriado dos poemas do Diogo. – Eu precisava tirar 10 e... e... nunca pensei que o poema iria ganhar o concurso estadual. Isso complicou tudo, mãe. – Você sabe o que é certo e o que é errado. Ninguém pode pegar o trabalho de outro. Fazer as tarefas da escola é sua responsabilidade, filho. – Você vai ligar para a escola e dizer a verdade? – Não, não sou eu quem deve ligar, pois não fui eu que peguei os trabalhos do Diogo. Você sabe o que deve fazer... e espero que faça o que é certo! – enfatizou a mãe. Marcelão ficou pensando, pensando... sem atrever-se a tomar alguma atitude. Duas semanas depois, os organizadores do concurso fizeram uma visita à escola. Todos os alunos, os pais, os professores, até a turminha do pré, todo mundo foi reunido no pátio. Um senhor de terno escuro e gravata fez o discurso. Por fim, o Marcelão e a mãe foram chamados ao palco. A diretora deu o microfone para ele. As mãos do menino tremiam. Marcelão sorriu, meio envergonhado, e começou a ler o poema: “Verde. Ver de perto/ ver de longe...”. Fez silêncio. Olhou a mãe. Olhou os companheiros e disse: - Desculpe, pessoal, eu não sou o poeta! Esse poema foi feito pelo meu irmão caçula, o Pati... Diogo. Diogo é o verdadeiro poeta da família. Eu sou esportista. Comentários, murmúrios. A diretora ficou chocada. O homem de gravata que tinha feito o discurso mexeu a cabeça para os lados em sinal de reprovação. A mãe solicitou o microfone e falou: – Pessoal, meus filhos são todos esportistas, menos Diogo. Ele gosta de fazer poemas. Diogo não é esportista, mas é um poeta maravilhoso e estou orgulhosa dele. – Também tenho orgulho do Marcelo – continuou – pois acho que Marcelão, como os amigos o chamam, foi muito valente ao confessar para vocês que o irmão é o autor do poema. Todos cometemos erros e, na minha opinião, o importante é ter a coragem de reconhecer os próprios erros. Os alunos aplaudiram. A professora acompanhou Diogo ao palco. Aplausos novamente. Até o irmão Marcelão bateu palmas. Assim foi como o Diogo, com oito aninhos, ganhou seu primeiro troféu, que está numa estante na sala da casa. O Diogo falou para os pais: Meu troféu está numa estante, E sabem o que é mais importante? Eu antes era um Patinho Feio, Agora sou um poeta aplaudido no recreio. *** Isabel Furini é palestrante e escritora, autora da coleção “Corujinha e os Filósofos”, da editora Bolsa Nacional do livro. e-mail: isabelfurini@hotmail.com
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