sexta-feira, 28 de maio de 2010

CAMPO DE TRIGO DE VAN GOGH

Corvos ferinos, mímicos ferinos,
sombras da genialidade,
murmúrio dos rios subterrâneos,


canal das águas do inconsciente
campo de trigo com pretos corvos
moendo as tenebrosas horas.


O vento sussurra entre os ouvidos a tela


- quase um ulular de morte.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

PALESTRA E LANÇAMENTO DE LIVRO


Palestra gratuita, Como escrever um livro, baseada em “O Livro do Escritor”, da Editora Instituto Memória, será ministrada em 26 de maio, às 19:00 horas, na FNAC do Parkshopping Barigui, Curitiba, pela escritora Isabel Florinda Furini.

Serão abordados os seguintes tópicos: Diferença entre Conto, Crônica, Novela e Romance. Estrutura do conto. Criação de personagens instigantes. Elementos da composição literária. Técnicas para o livro infanto-juvenil.

Ao finalizar a palestra será lançado o livro: Oratória Forense, da Editora Instituto Memória.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O PODER DO LIVRO (Conto)

Como um alquimista em busca da pedra filosofal, Roberto colocou pó de enxofre nos dedos das mãos e manuseou as páginas de um romance, abrindo-o ao acaso. Leu um parágrafo. Tantos anos na Editora deram-lhe uma firmeza inigualável.

– Dona Irineia.... – chamou o patrão.

– Sim, senhor – respondeu ela, enquanto se levantava, empurrando a cadeira.

Ele respirou profundamente e disse com raiva:

– Essa febre de escrever tomou conta da população! Todo mundo quer escrever, é irritante!
Roberto acomodou os óculos grossos sobre o nariz proeminente e alisou seus cabelos grisalhos, longos e oleosos.

– Por favor – pediu Roberto, acendendo um cigarro – Isto é ridículo! Este cara já enviou mais de dez livros... Soltou a fumaça do cigarro no ar. – Ele ainda não entendeu que nunca vou publicar suas obras? Quando vir este nome no envelope nem abra. Jogue fora!
Irineia disse que enviaria a carta padrão. Carta padrão consistia num modelo, onde a obra do escritor era elogiada e a Editora pedia desculpas por não poder incluí-la, falta de espaço na programação. Isso evitava processos e discussões intermináveis com autores inconformados.

Leu uma página e ficou irritado, “vejo um escritor de pulso vacilante, tentando contar uma história, mas sem técnica suficiente. Um trabalho superior a suas forças, megalomaníaco” pensou. – Não é suficiente ter uma história interessante, deve ser bem contada. Deve ser: “Alento de fogo.” Dona Irineia colocou novos livros sobre a escrivaninha: “Sonhos”, “Heróis do presente”, “A Morte de Joana” “Chuva no telhado” e “Mundo em guerra”. Roberto empurrou os óculos grossos de armação preta e enfiou o nariz nos originais de “Heróis do Presente”. Gás Bucal, murmurou.

Fechou o livro e voltou a abri-lo. Leu um parágrafo. Fechou e tornou a abri-lo pela terceira vez.
Não, eu estava certo na primeira classificação: Gás Bucal. Anote,dona Irinéia, Heróis do Presente, é Gás Bucal.

Sempre falava para a secretária qual tinha sido sua avaliação. Fazia anos que ela trabalhava para ele e já não sabia viver sem sua presença calada e submissa. Só uma vez Irineia levantara a voz, dois anos atrás, para defender um livro de amor e traição. Nunca antes, nunca depois.

Pegou o livro “Chuva no Telhado” – Roberto deixou fluir os originais encadernados em cor cinza pelas mãos sensíveis. Passou os dedos pelas bordas e o abriu. Leu uma página, este é pior. Nos últimos três meses, só os originais de “Lago em Sombra” tinham sido aceitos para edição. Roberto tinha, à semelhança dos alquimistas, a busca incansável. Ainda lembrava seu avô dizendo: Existem dois tipos de editores, os editores alquimistas que procuram a pedra filosofal das palavras e os editores alquimistas que procuram simplesmente o ouro filosofal. Ele era do tipo um.

Seu avô tinha ideado um método infalível de classificar os originais. Tinha relação com o elemento ar. Talvez porque o avô Florêncio fosse de um signo de ar, Gêmeos. E toda sua vida tinha acreditado no destino e nas estrelas.

O método era o seguinte: Ruim, D – Gás estomacal. Bom – C: Gás bucal – Provinha da boca. Muito bom: B – Corrente de vento chega à garganta. Excelente: A – Gás Pulmonar . Obras de grande qualidade chegavam poucas. Extraordinário: AAA- ALENTO DE FOGO – O fogo do corpo e da alma.

Poucas obras “Alento de Fogo” havia recebido na vida. Na realidade, só recebera duas. Há trinta anos, seu avô ainda era vivo, quando receberam uma obra Alento de Fogo. O avô Florêncio estava doente, mas ao ler o texto recuperou-se totalmente e viveu mais cinco anos, com muita energia e vitalidade..

– Só o Alento de Fogo pode dar a vida... ou a morte... – disse o velho.

Dez anos atrás tinha reconhecido, ele sozinho, outra obra Alento de Fogo. Foi fascinante. A cada página que lia recuperava a vitalidade. Fez uma viagem ao redor do mundo. Nada de hotéis caros, de shoppings nem de restaurantes chiques. Caminhou pelas areias do deserto. Escalou as pirâmides, dançou na Ilha de Páscoa diante dos vigias.

Foi feliz durante dois anos. Mas a energia do alento também se esgota. Desde então, só procura o Alento. Há anos que traz os óculos grossos que escondem o desespero de sua alma na procura de um livro especial. Um livro que o tire da monotonia, da mesmice, das preocupações, do vazio da vida. Um livro revelador de um mundo paralelo que fale de suas expectativas, de seus sonhos, acertos e fracassos.

Roberto procurava na literatura, na palavra, a antiga arte da transmutação da mente. Arte anterior às técnicas da mente positiva ou da neurolinguística e outras ervas, que no seu entender, vendiam fantasias... das boas e das ruins, e algumas dessas fantasias eram terrivelmente nocivas à alma.

Roberto procurava na literatura a arte de entender o mundo. E a vitalidade para continuar a viver. A vitalidade que tinha perdido nos longos dias de leitura, na luta constante para analisar os textos com justiça. A análise e a luta com os textos sugaram sua energia. No fragor da contenda ficou míope e não conseguia enxergar a beleza da vida.

Roberto também escrevia. Ler e escrever. Escrever e ler. Sua vida tinha-se debruçado sobre os livros. Sua vida tinha-se esgotado entre letras impressas e folhas de papel. Os livros inéditos se pareciam. Eram como almas sem corpo. Todos pareciam iguais: papel branco oficio ou A4, letra New Roman ou Arial, corpo doze, duplo espaço.

Originais ruins que chegavam a suas mãos eram jogados no lixo. Não lia. Só abria três vezes o livro. Abria o livro, lia uma página e anotava a classificação. Abria de novo e lia dois parágrafos. Abria-o, pela terceira vez e só lia um parágrafo. Ele dava três chances. Só três, para cada candidato.

Originais ruins eram jogados no lixo. Não lia. E não era por falta de tempo. Nem por preguiça. Não lia porque lhe fazia mal, como a carne gordurosa o intoxicava. Intoxicava sua alma, embotava seus sentidos. Em síntese, diminuíam o ciclo de vida de Roberto.

Para Roberto, não ler lixo não era modismo, capricho, nem uma forma de esnobar a literatura. Era sobrevivência. Teve terríveis experiências, um livro mal escrito aumentava sua úlcera, desregulava os movimentos de diástole e sístole de seu músculo cardíaco.

Poucos sabiam que o alimento de Roberto era a literatura. Não só o alimento de sua alma, mas até certo ponto, a literatura era também o alimento de seu corpo. Até suas vísceras precisavam de leitura. Uma página ruim que lia, e seu corpo parecia desmembrar-se.

– Hoje não estou com sorte – pensou, enquanto terminava de ler o parágrafo. Só achou um livro C. Classificação A e B, lia do princípio até o final. Os outros não, questão de saúde Ao final da tarde, recebeu a visita de seu primo José, dono de uma grande editora.

– Importa-se demais com qualidade, Roberto – recriminou-o – Marketing. Agora tudo é marketing. Eu dou para o departamento de marketing ver as possibilidades de venda, a gente nunca sabe quando tem um best-seller nas mãos...

– Lembra de nosso avô Florêncio?

– Você sempre foi o neto preferido dele.

Vô Florencio sempre dizia que um livro é como uma panela de pressão. Tem ar quente... entende, José? Todo livro tem um ar... um alento... o livro ruim é como uma panela de pressão com ar gelado, esfria o sangue nas veias, pois não foi purificado pela arte. Panela de pressão apitando, enfumaçando, é sinal do fogo do artista. Esse fogo fica impregnado em cada página, em cada parágrafo, em cada frase, em cada canto do livro.

– Panela de pressão! – exclamou José e soltou uma forte gargalhada que atravessou
o ar e bateu no relógio. O relógio deu algumas badaladas, longas, sem compasso, arrítmicas.
No dia seguinte, o céu nublou-se, a chuva bateu sobre os vidros da janela. Roberto continuara lendo. Três dias depois, voltou a sair o sol.

Nessa quinta-feira, Roberto chegou à Editora às 8 da manhã, como era habitual.
A luz estava acesa. Entrou. Dona Irineia estava de pé, falando com uma senhora baixinha e muito magra, de cabelos brancos unidos no alto da cabeça por um coque, ao estilo das avós antigas. Vestia com elegância uma blusa azul, com pequenos desenhos vermelhos e uma calça azul marinho.

– A senhora é autora – disse Irineia, sem jeito.

– Bom dia, Senhor . – disse a velhinha, fitando-o com seus olhos azuis, intensos.

– Meu nome é Maysa – apresentou-se e estendeu-lhe a mão direita para cumprimentá-lo, enquanto com a esquerda apertava os originais.

– A senhora não sabe ler? – perguntou Roberto, de forma ríspida, cruzando os braços.

– Sei, claro que sei ler – disse ela recolhendo o braço e pegando o livro com ambas as mãos.

– Pois veja, então, minha senhora! – gritou Roberto, abrindo a porta e assinalando o cartaz – Autores: Proibida a entrada.

– Senhor Roberto – disse Irineia, tentando ajudar a velha senhora – eu a deixei entrar, ela só quer falar sobre o livro. Ficou anos escrevendo e...

Roberto interrompeu sua fala. Pode deixá-lo...

Abriu a porta, entrou e sentou-se em seu lugar. Pela porta entreaberta, viu que a velha continuava em pé, imóvel.

– Fora daqui – disse entre dentes – fora, velhinha, fora. Eu não edito biografias de mortos ilustres, não edito livros de tricô, nem receitas culinárias. Escutou a velha despedir-se e o ruído da porta fechando-se. Roberto colocou enxofre nas pontas dos dedos e abriu um livro. Buscava a cada dia a áurica dos alquimistas, o mercúrio.

– Posso entrar? – perguntou dona Irineia.

Roberto ficou impressionado. Raramente ela entrava sem ser chamada.

– Peço que o senhor avalie este livro, por favor, senhor Roberto. Não tomará muito de seu tempo. Faça esse favor para mim – e colocou o livro sobre a escrivaninha.

– Está bem – disse ele, num gesto resignado, como um capitão depondo as armas.

Roberto abriu o livro. Começou a ler a página, o primeiro parágrafo e nas solas de seus pés sentiu um comichão. Segundo parágrafo e um calor começou a subir de seus tornozelos. Apertou o estômago, o batimento cardíaco chegou à garganta e transformou-se em admiração e em silêncio. Antes de terminar a página, viu um espírito, um dragão vermelho e preto. Um dragão enorme, que devorava as florestas da dúvida, derrubava as montanhas da presunção e arrasava os vales da mediocridade.

- Uma obra prima! – tentou gritar, mas não conseguiu. Sentiu um estouro na garganta... ou foi no peito? Eram cinco horas e o relógio de pêndulo começou a dar a primeira badalada.
Roberto sentiu que seu peito doía. Era uma dor dilacerante. Levou as mãos ao coração . Oh, Deus, pensou, e sentindo a morte chegar, não lamentou sua busca. Não os anos perdidos diante da escrivaninha, nem a janela fechada onde nunca entrava o vento. Não lamentou ter ficado sem amigos, em ter sido abandonado pela esposa. Não lamentou ser considerado estranho ou louco. A única coisa que lamentava era ter que partir da terra sem poder terminar de ler originais com “Alento de Fogo”. Alento de fogo, alento de fogo, repetia. Abriu novamente o livro e tentou ler...

– Alento de Fogo! – gritou. Abriu os olhos e a boca e o espírito do livro, o dragão invisível, transformou-se numa bola de fogo incandescente, foi arremessado de seu corpo e jogou-se sobre os originais do livro. Seu rosto caía pesadamente sobre a escrivaninha, enquanto seu espírito livre revoava sobre a mesa, nas asas do dragão. A asa esquerda do dragão bateu na janela, quebrando o vidro. Entrou uma lufada de ar. Respirou profundamente. Esse ar que entrava pelo vidro quebrado lhe fazia bem, muito bem, devolvia-lhe a vitalidade.

Abriu os olhos. – Vou chamar um médico – disse Irineia.

– Não, não... estou bem. Só preciso ler.

Irineia olhou-o com assombro. Roberto abriu o livro e leu a primeira página. Sorriu.
Irineia... Irineia.... – disse com voz quase carinhosa. Irineia, estou lendo e pensando... já somos quase velhos, Irineia, passamos tantos anos trabalhando juntos... tantos anos. Olharam-se em silêncio.

Quero dar a volta ao mundo. Quer viajar comigo, Irineia?

– Como sua secretária?

– Sim...Não! Não! Viajar comigo.... você sabe... você sabe, Irineia... Nós nos damos bem... nós gostamos dos mesmos livros.... vamos envelhecer sozinhos.... e envelhecer sozinho, é tolice, não acha? Vamos compartilhar nossos últimos anos? O que diz, Irineia?
Irineia chorava como uma criança que, no Natal, ganha um presente inesperado de Papai Noel. Só conseguiu enxugar as lágrimas. E sorrir.

4º lugar no Concurso de Contos Paulo Leminski, 2008.

sábado, 8 de maio de 2010

OS PORTÕES - Conto de Isabel Furini




Pegou um gladíolo que sobressaía entre as flores que sua irmã havia espalhado sobre o túmulo e colocou-o no vaso de cerâmica azul com desenhos bucólicos. Depois foi a vez de arrumar os cravos brancos, logo as calêndulas junto com folhas verdes. Sempre gostou de ramalhetes, até fez cursos de ikebana, por isso, nessa tarde de domingo, quando sua irmã Cacilda, sempre impaciente, espalhou as flores sobre o túmulo, rezou uma rápida prece e disse tchau Maria, vou para casa de mamãe, ela nem se preocupou.

Quando terminou de arrumar as flores, o Sol já estava caindo e faltava pouco para que o guarda-noturno do cemitério fechasse os portões. Deveria ter saído com Cacilda em vez de dizer tchau e continuar arrumando as flores. Por que eu não fiz isso? Por que sou tão detalhista? Pensava enquanto caminhava entre as cruzes e os túmulos em busca de uma saída.

O sol começava a cair e ela, receosa, acelerou o passo. Olhou para os lados. O cemitério ficou deserto e ela lá, sozinha. Começou a sentir um friozinho na barriga. Deu para perceber o formigamento nas mãos, sempre que se assusta tem essa sensação desagradável. Acelerou ainda mais o passo, tentou correr. Não conseguiu. Sempre que sentia medo acontecia a mesma coisa, suas pernas não obedeciam a seu comando. Essas cruzes. Oh! não!.. errei o caminho. Estava na parte detrás do cemitério, só via um muro pintado de branco. Só isso. Voltou sobre seus passos, túmulos enfileirados e mais túmulos...Seria essa a rua certa? Sentiu medo.

Queria sair e rápido. O sol se escondia no horizonte. Cacilda estava apressada, disse tchau Maria, podia ter me esperado - mas não, nunca me espera, desde criança ela gosta de deixar-me para trás. Ela, por ser a mais velha, sempre teve mais liberdade. Para onde estou indo? Estou perdida. Calma, Maria, calma, você conhece este cemitério, já veio aqui várias vezes. Calma, calma. Avançou entre os mausoléus. Ah! Já estava perto de um portão, que sorte!... Queria sair imediatamente dali. Não conseguia correr, mas conseguia caminhar, ao menos isso. Seus pés pareciam presos a terra, seu passo não era tão rápido quanto ela queria e suas pernas tremiam, mas estava indo para frente enquanto as sombras avançavam. Com desespero, viu o muro branco e os portões fechados. Não conseguiria sair. Onde estará o guarda- noturno?

As sombras se espalharam sobre os túmulos dando ao cemitério um aspecto fantasmagórico. Os mortos eram isso mesmo, mortos. Nada poderiam fazer contra ela, mas mesmo assim ela sentia medo. Devia ter saído com sua irmã. Cacilda sempre fazia visitas rápidas apenas para colocar as flores de qualquer maneira, sem nenhuma arte e rezar uma Ave Maria.

Devia reconhecer a verdade, não sabia o caminho para o portão principal do cemitério e estava anoitecendo. Anoitecendo depressa. As sombras se estenderam e ela aí, caminhando sem cessar. Tentando sair. E o vigia? Olhou suas roupas novas. Nem lembrava quando as havia comprado. Estava tão estressada que nem conseguia lembrar quando ou em que loja comprara essas roupas. Pena que não tinha o celular com ela. Ela havia esquecido o celular em casa!...

Seguramente na mesa de jantar ou talvez no criado mudo. Não tinha nem um espelho. Queria olhar-se no espelho. Que ridículo! Pensou. Querer olhar-se no espelho em um momento desses.
Aquele mausoléu de mármore branco!.. Desse mausoléu lembrava bem, estava à esquerda do portão principal. Que sorte! O guarda estará lá. Ele abrirá o portão. Que bom. Ele abrirá o portão. Apressou o passo e lá estava o portão. Suspirou aliviada.

Sob os últimos raios do sol e a lua cheia que começava a aparecer no horizonte, viu o portão, mas ninguém por perto. E o guarda? Avançou até o portão e olhou para os lados. A solução é escalar, pensou. E, determinada, começou a escalar o portão, primeiro colocou um pé na barra inferior da grade e ergueu os braços para segurar na parte superior. Conseguiu elevar-se um pouco.

Esforçou-se mais, ergueu os braços novamente e segurou uma das barras horizontais. Já estou perto do topo, que sorte! Mais um esforço e... tocou a barra superior do portão, um pé no ar e o outro pé escorregou antes de poder segurar com as mãos e caiu de costas. Sentou-se rapidamente no chão, não estava machucada, mas devia iniciar de novo a subida. O guarda-noturno estará perto? Olhou para os lados. Ninguém. Ficaria aí, agarrada ao portão. Alguém passaria a qualquer momento e a ajudaria. Suas mãos se aferraram às grades altas. Quando criança já havia tocado essas grades, foi no enterro da avó e sempre lhe pareceram muito frias. Mas agora não. Nem sentia a temperatura, ela estava tão fria quanto o portão. As mãos frias e morrendo de medo.

De repente, sons de passos. Um jovem de cabelo loiro transitava pela rua, vinha do bairro em direção ao ponto de ônibus. No desespero por chamar a atenção do rapaz sacudiu o portão e gritou, gritou com todas suas forças. Viu o rapaz parar em frente do portão, com os olhos arregalados por um segundo, e sair correndo apavorado.

– Idiota!.. Volte!... Ajude-me a sair daqui.

– O que foi moça? – perguntou alguém atrás dela.

Graças a Deus, o guarda do cemitério a escutara. Voltou-se. O que viu a deixou confusa. Havia inúmeras pessoas atrás dela, homens, mulheres, velhos, jovens, adultos, crianças. Todos olhando o portão. Alguns com tristeza, outros com desespero e outros ainda, com raiva.
Um velho aproximou-se dela.

– Você deve ser nova aqui e não conhece as regras. Só podemos olhar para fora, mas não podemos sair. Não podemos sair. Só os vivos podem, só os vivos.

Isabel Furini
Esse conto recebeu Menção Honrosa no Concurso de Contos de Porto Seguro, Brasil, em 2009.
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